Um olhar sobre a cidade

        Inspirado (a) na alma encantadora das ruas de João do Rio o Ensino Médio da Escola Nossa Senhora Auxiliadora de Ponte Nova  através das aulas de Ensino Religioso vem  procurando entrar nas subjetividades, no eu de cada um, nas culturas, na ecologia, na arte e na sociedade. A idéia, segundo a professora Ana Luiza Fernandes de Oliveira Dias,  é que ao revisitar estes "lugares" a memória da cidade de Ponte Nova seja vista, divulgada, resgatada e preservada. É uma história que precisa ser vista, despertando o sentido de pertença e conservação do patrimônio cultural. E esse material pode ser aproveitado pelas escolas como fontes ricas de educação e memórias de nossa cidade", diz Ana Luiza. Ao fotografar  ou pesquisar fotos antigas (estas,  por sinal a pontenet através de seu portal, organizado por João Mattos tem prestado relevante serviço), os alunos envolveram-se nesta pesquisa que teve o seu início em março de 2008, produzindo já belíssimos vídeos (confira), despertando a criatividade e educação do olhar.

Vídeo - Ponte Nova - Antes e Depois

Vídeo - Parte da Nossa História

Apresentação 01

Apresentação 02

Apresentação 03

 

 



texto

João do Rio

A ALMA ENCANTADORA DAS RUAS

A RUA

        Eu amo a rua. Esse sentimento de natureza toda íntima não vos seria revelado por mim se não julgasse, e razões não tivesse para julgar, que este amor assim absoluto e assim exagerado é partilhado por todos vós. Nós somos irmãos, nós nos sentimos parecidos e iguais; nas cidades, nas aldeias, nos povoados, não porque soframos, com a dor e os desprazeres, a lei e a polícia, mas porque nos une, nivela e agremia o amor da rua. É este mesmo o sentimento imperturbável e indissolúvel, o único que, como a própria vida, resiste às idades e às épocas. Tudo se transforma, tudo varia - o amor, o ódio, o egoísmo. Hoje é mais amargo o riso, mais dolorosa a ironia, Os séculos passam, deslizam, levando as coisas fúteis e os acontecimentos notáveis. Só persiste e fica, legado das gerações cada vez maior, o amor da rua. A rua!Que é a rua?  (...) Os dicionários dizem: "Rua, do latim ruga, sulco. Espaço entre as casas e as povoações por onde se anda e passeia". Abri o primeiro, abri o segundo, abri dez, vinte enciclopédias, manuseei... A rua era para eles apenas um alinhado de fachadas por onde se anda nas povoações.

        Ora, a rua é mais do que isso, a rua é um fator da vida das cidades, a rua tem alma!

        A rua nasce como o homem, do soluço, do espasmo. Há suor humano na argamassa do seu calçamento. Cada casa que se ergue é feita do esforço exaustivo de muitos seres, e haveis de ter visto pedreiros e canteiros, ao erguer as pedras para as frontarias, cantarem, cobertos de suor, uma melopéia tão triste que pelo ar parece um arquejante soluço. A rua sente nos nervos essa miséria da criação, e por isso é a mais igualitária, a mais socialista, a mais niveladora das obras humanas(...) com o céu e com os anjos...

        A rua faz as celebridades e as revoltas, a rua criou um tipo universal, tipo que vive em cada aspecto urbano, em cada detalhe, em cada praça, tipo diabólico que tem dos gnomos e dos silfos das florestas, tipo proteiforme, feito de risos e de lágrimas, de patifarias e de crimes irresponsáveis, de abandono e de inédita filosofia, tipo esquisito e ambíguo com saltos de felino e risos de navalha, o prodígio de uma criança mais sabida e cética que os velhos de setenta invernos, mas cuja ingenuidade é perpétua, voz que dá o apelido fatal aos potentados e nunca teve preocupações, criatura que pede como se fosse natural pedir, aclama sem interesse, e pode rir, francamente, depois de ter conhecido todos os males da cidade, poeira d"ouro que se faz lama e torna a ser poeira - a rua criou o garoto! (...) cada rua é para mim um ser vivo e imóvel.

        Balzac dizia que as ruas de Paris nos dão impressões humanas. São assim as ruas de todas as cidades, com vida e destinos iguais aos do homem. Por que nascem elas? Da necessidade de alargamento das grandes colméias sociais, de interesses comerciais, dizem. Mas ninguém o sabe.

        Oh! sim, as ruas têm alma! Há ruas honestas, ruas ambíguas, ruas sinistras, ruas nobres, delicadas, trágicas, depravadas, puras, infames, ruas sem história, ruas tão velhas que bastam para contar a evolução de uma cidade inteira, ruas guerreiras, revoltosas, medrosas, spleenéticas, snobs, ruas aristocráticas, ruas amorosas, ruas covardes, que ficam sem pinga de sangue...

        Vede a Rua do Ouvidor. É a fanfarronada em pessoa, exagerando, mentindo, tomando parte em tudo, mas desertando, correndo os taipais das montras à mais leve sombra de perigo(...)

        A Rua da Misericórdia, ao contrário, com as suas hospedarias lôbregas, a miséria, a desgraça das casas velhas e a cair, os corredores bafientos, é perpetuamente lamentável. Foi a primeira rua do Rio. Dela partimos todos nós, nela passaram os vice-reis malandros, os gananciosos, os escravos nus, os senhores em redes; nela vicejou a imundície, nela desabotoou a flor da influência jesuítica. Índios batidos, negros presos a ferros, domínio ignorante e bestial, o primeiro balbucio da cidade foi um grito de misericórdia, foi um estertor, um ai! tremendo atirado aos céus. Dela brotou a cidade no antigo esplendor do Largo do Paço, dela decorreram, como de um corpo que sangra, os becos humildes e os coalhos de sangue, que são as praças, ribeirinhas do mar. Mas, soluço de espancado, primeiro esforço de uma porção de infelizes, ela continuou pelos séculos afora sempre lamentável, e tão augustiosa e franca e verdadeira na sua dor que os patriotas lisonjeiros e os governos, ninguém, ninguém se lembrou nunca de lhe tirar das esquinas aquela muda prece, aquele grito de mendiga velha: - Misericórdia! (...)

        Há entretanto outras ruas, que nascem íntimas, familiares, incapazes de dar um passo sem que todas as vizinhas não saibam (...) Qual de vós já passou a noite em claro ouvindo o segredo de cada rua? Qual de vós já sentiu o mistério, o sono, o vício, as idéias de cada bairro?

        Se as ruas são entes vivos, as ruas pensam, têm idéias, filosofia e religião. Há ruas inteiramente católicas, ruas protestantes, ruas livre-pensadoras e até ruas sem religião. Trafalgar Square, dizia o mestre humorista Jerome, não tem uma opinião teológica definitiva. O mesmo se pode dizer da Praça da Concórdia de Paris ou da Praça Tiradentes. Há criatura mais sem miolos que o Largo do Rocio? Devia ser respeitável e austero. Lá, Pedro I, trepado num belo cavalo e com um belo gesto, mostra aos povos a carta da independência, fingindo dar um grito que nunca deu. Pois bem: não há sujeito mais pândego e menos sério do que o velho ex-Largo do Rocio. Os seus sentimentos religiosos oscilam entre a depravação e a roleta. Felizmente, outras redimem a sociedade de pedra e cal, pelo seu culto e o seu fervor.

        Nós, os homens nervosos, temos de quando em vez alucinações parciais da pele, dores fulgurantes, a sensação de um contacto que não existe, a certeza de que chamam por nós. As ruas têm os rolos, as casas mal assombradas, e há até ruas possessas, com o diabo no corpo. Ruas assim ainda mostram o que pensam. Talvez as outras tenham maiores delírios, mas são como os homens normais - guardam dentro do cérebro todos os pensamentos extravagantes. Mas o importante, o grave, é ser a rua a causa fundamental da diversidade dos tipos urbanos. (...) A rua é a civilização da estrada. Onde morre o grande caminho começa a rua, e, por isso, ela está para a grande cidade como a estrada está para o mundo.

        Oh! sim, a rua faz o indivíduo, nós bem o sentimos.

        Se a rua é para o homem urbano o que a estrada foi para o homem social, é claro que a preocupação maior, a associada a todas as outras idéias do ser das cidades, é a rua. Nós pensamos sempre na rua. Desde os mais tenros anos ela resume para o homem todos os ideais, os mais confusos, os mais antagônicos, os mais estranhos, desde a noção de liberdade e de difamação - idéias gerais - até a aspiração de dinheiro, de alegria e de amor, idéias particulares. Instintivamente, quando a criança começa a engatinhar, só tem um desejo: ir para a rua! Ainda não fala e já a assustam: se você for para a rua encontra o bicho! Se você sair apanha palmadas! Qual! Não há nada! É pilhar um portão aberto que o petiz não se lembra mais de bichos nem de pancadas!(...)

        No espírito humano a rua chega a ser uma imagem que se liga a todos os sentimentos e serve para todas as comparações. Basta percorrer a poesia anônima para constatar a flagrante verdade.

A rua...
Cumprida, cumprida, atua...
Olê! complicada, complicada, a lua
A rua
Nua!

        Essa idéia reflete-se nas religiões, nos livros sagrados, na arte de todos os tempos, cada vez mais afiada, cada vez mais sensível. (...)A musa da cidade, a musa constante e anônima, que tange todas as cordas da vida e é como a alma da multidão, a musa triste é vagabunda, é livre, é pobre, é humilde. E por isso todos lhe sofrem a ingente fascinação, por isso a voz de um vagabundo, nas noites de luar, enche de lágrimas os olhos dos mais frios, por isso ninguém háque não a ame - flor de ideal nascida nas sarjetas, sonho perpétuo da cidade à margem da poesia, riso e lágrima, poesia da encantadora alma das ruas!...